por Juiz de Direito do TJDFT Fábio Esteves e Ministro do STF Edson Fachin 

Desalojar quem sofre discriminações por pertencer a grupos racialmente subalternizados, da condição de atores subversivos para a de sujeitos de direitos, de igual proteção legal: a esse desafio se alçou o julgamento do Habeas Corpus 154.248 pelo Supremo Tribunal Federal.

Ao fazê-lo, arrostou a crença de que a ação danosa embora fosse perpetrada com a utilização do elemento raça, não consistia em discriminação sistemática apta a ser alçada como modo de reprodução do racismo.

Veio a decisão do último dia 28 na esteira de evento recente. Em 19/2/2021, foi publicado no Diário Oficial do Senado Federal o Decreto Legislativo nº 1/2021, que aprovou o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 5 de junho de 2013.

O texto da convenção resultou aprovado nos termos do procedimento previsto no §3º do artigo 5º da Constituição Federal, portanto temos uma inovação normativa com a assunção, pelo Brasil, da necessidade de aderir a um plano interamericano de enfrentamento de práticas que marcam profundamente as relações sociais no Brasil, das Américas e do mundo, estruturadas a partir da raça e responsáveis por complexas desigualdades.

Diferentemente da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1967 e ratificada pelo Brasil em 1969, o recente documento é mais abrangente, reprime as práticas discriminatórias também nos ambientes privados. A convenção é contundente ao comprometer os Estados a combater o racismo estrutural e institucional.

Nessa esteira, uma árdua e indispensável tarefa toma conta dos aplicadores do Direito no sentido de ressignificar o ordenamento jurídico brasileiro com o atravessamento das questões raciais, objetos dos compromissos assumidos da convenção, para a reformulação de importantes institutos, entre eles os do Direito Penal, a partir da adoção de postura interpretativa que considere a raça como fator elementar para a compreensão e concretização das normas jurídicas que buscam reestruturar as instituições e suas práticas para a eliminação do racismo, da discriminação racial e as formas correlatas de intolerância.

A interação entre a legislação internacional e o Direito local, conforme as exigências naquela contidas, não apenas promove um acréscimo ao programa normativo como também traduz desafio quanto à reformulação do âmbito normativo, pois o fato de o Brasil ter se tornado signatário de compromissos que buscam a proteção dos direitos humanos contra violação causadas pelas mais diversas formas de manifestação do racismo, da discriminação racial e outras intolerâncias, redefine o pano de fundo da realidade e de seus sentidos para o processo de concretização da norma.

Nas palavras de Marcelo Torelly (2016, p. 262), há a necessidade de uma governança transversal dos direitos humanos para que as práticas judiciais nacionais e internacionais desprezem a concepção hierárquica para promover reciprocidade entre os sistemas normativos; em suas palavras, a condição de possibilidade da governança transversal dos direitos humanos por meio da interação jurídica, qual seja, a ausência de soluções hierárquicas que estabeleçam um centro decisório fixo e consequentemente desconstituam a transversalidade é, ao mesmo tempo, sua limitação normativa. Nessa perspectiva, o processo de controle de convencionalidade pode facilitar que um regime chegue, em seu processo de decisão próprio, a uma decisão mais adequada, construindo pontes entre sistema heterárquicos. Consequentemente, e distintamente das abordagens hierárquicas, inexistem garantias que as respostas sejam sempre coerentes. A coerência, quando ocorre, é derivada de um processo de longo prazo no qual a tensão entre as ordens produz interação e, consequentemente, a interação gradualmente estabiliza normas em regras e princípios ( Torelly, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Humanos: Experiências Latino-Americanas . Tese de doutorado em Direito apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2016, 300f ).

Na hipótese da convenção, mesmo tendo ela sido internalizada por obra do poder constituinte reformador, o perigo da hierarquização ou rejeição não está descartado, o que uma concepção governança transversal pode evitar.

A adoção Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância se torna, entre os outros instrumentos, elementar diretriz para o intérprete, cuja atitude deve ser a de centralizar no processo de atribuição dos sentidos aos textos normativos internos, tudo que está compreendido, em termos de significados, no percurso que vai desde o simples fato do surgimento da convenção, passando pelos debates e processos para a sua adoção pelo Brasil, até chegarmos no conteúdo dos seus preceitos propriamente ditos.

Integrada ao ordenamento jurídico brasileiro, renovam-se as exigências para a redução das desigualdades raciais, em particular as verificadas no âmbito do sistema de Justiça Criminal no que se refere à igual proteção dos bens jurídicos que integram as dimensões da dignidade da pessoa humana.

Pelo artigo 4º, o Brasil se comprometeu a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições da convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância. O artigo 10 da citada convenção exige do Brasil o compromisso de garantir às vítimas tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente.

Forma particular de perpetração da discriminação em decorrência da raça que parte do pressuposto de que a vítima por ser inferior pelo seu pertencimento a um grupo racializado é merecedora de desprezo, o delito de injúria racial materializa ato que vilipendia a autoconsideração da pessoa. Um crime que para se consumar apropria-se das concepções e mecanismos que estabelecem, sistematicamente, a subalternidade de determinados grupos em favor do domínio de outros, pelo fator raça, o que constituí racismo, motivo pelo qual o STF realizou correção no percurso da persecução penal destas odiosas condutas, não permitindo como corriqueiramente se verifica a obstaculização detratora, pelo tempo, de efetivas respostas às vítimas e à sociedade.

Para a Professora e Jurista Thula Pires, a cruel realidade dos que vivem na zona do não ser (Pires, Thula. Racializando o debate sobre direitos humanos. Limites e possibilidades da criminalização do racismo no Brasil . Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos. V.15 n.28, 65-75, 2018. p. 66) não evidencia, a rigor, violação de direitos, mas a mais bem-acabada aplicação do direito, nos termos em que foi construído, para atuar e funcionar ( idem , p. 67).

Deixar de aplicar normas de teor antirracista, esvaziar as medidas de promoção da igualdade racial e fortalecer a imagem do negro como não humano, inferior, delinquente, primitivo, lascivo e servil são igualmente exemplos de racismo institucional, diz a já citada professora Thula Pires ( ibidem , p.68).

Nesse contexto, o reconhecimento da imprescritibilidade do crime de injúria racial promove deslocamentos, intercâmbios e rearranjos das percepções acerca das violências raciais que transitam entre as zonas do ser e não ser, como limite para realizar plenamente a exigência constitucional de repúdio e repressão do racismo.

O julgamento do HC em tela presta homenagem à Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, como também à necessidade de concretizar seu texto, de envergadura constitucional, aberto às construções antidiscriminatórias.

Luiz Edson Fachin é ministro do Supremo Tribunal Federal.

Fábio Francisco Esteves é mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros (Enajun) e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação (Fonajurd) e juiz instrutor em gabinete de ministro do STF.

* Artigo publicado no site Consultor Jurídico, em 05/11/2021.