A reforma trabalhista que começou a vigorar no Brasil em 11 de novembro já começa a mostrar seus resultados. Um dos primeiros afetados pelas novas regras se chama Cosme Barbosa dos Santos, um trabalhador rural de Ilhéus, na Bahia. No início deste ano, ele entrou com uma ação trabalhista contra o dono da fazenda onde trabalhava até novembro do ano passado. Por ter sido baleado em um assalto no local e ter sido despedido após a licença médica, pedia um total de 50.000 reais em indenizações.
No final, não apenas perdeu a ação como o juiz também lhe negou o benefício de justiça gratuita e decidiu que Cosme deve pagar 8.500 reais pelos custos do processo — entre honorários, custas e condenação por supostamente agir com má fé. Um dinheiro inimaginável para a realidade em que vive: antes de estar desempregado, ganhava 880 reais por mês na fazenda.
A decisão do magistrado José Cairo Junior, da 3ª Vara do Trabalho de Ilhéus, ocorreu no primeiro dia das novas regras. Ele entendeu que a nova legislação trabalhista deve ser aplicada para os casos que já estavam em curso. Por isso, lançou mão então da inédita regra que prevê que ex-empregados que entrarem com ações trabalhistas devem arcar com custos de perícia e de honorários se perderem a demanda e/ou agirem com má fé. Trata-se de uma norma que impõe mais empecilhos para que o trabalhador entre na Justiça. “Ao contrário do que ocorre com as normas de Direito material, as leis processuais produzem efeitos imediatos”, escreveu o juiz em sua sentença.
No entanto, no mesmo dia 11 de novembro, outro juiz da Justiça do Trabalho da Bahia, Murilo Carvalho Sampaio, teve outro entendimento e escreveu em uma sentença que as novas regras não podem ser aplicadas em processos já em curso, uma vez que “configuraria ofensa direta ao devido processo legal”.
As duas decisões, contraditórias, dão pistas sobre como será a disputa nos tribunais pela aplicação ou não da nova lei trabalhista. “O tempo rege o ato. E nesse caso a sentença não poderia ter sido proferida com a lei nova. Isso fere vários princípios constitucionais e o devido o processo legal”, argumenta a juíza do Trabalho Eloina Machado, também da Bahia, ao EL PAÍS. Quando a ação foi proposta, segue Machado, “ambas as partes não tinham ideia de mudanças que incidiram sobre o patrimônio delas”. Ademais, “o código de processo civil veda a decisão surpresa”, explica. “A lei nova não pode retroagir e interferir nos atos consolidados durante a vigência da legislação antiga. Deve-se contar a partir do ajuizamento da ação.”
Quatro tiros e uma demissão
Cosme dos Santos, hoje com 43 anos, morava na fazenda em que trabalhava. Na manhã do dia 23 de julho de 2016, um sábado, quando se preparava para começar o serviço, levou quatro tiros no abdome durante uma tentativa de assalto. Recebeu um auxílio doença do INSS e ficou sem trabalhar até o dia 23 de novembro daquele ano. Encontrava-se em seu primeiro dia útil de trabalho após o incidente quando foi demitido sem justa causa.
O trabalhador rural entrou então com uma ação trabalhista contra o antigo patrão, Marcelo Lyra Gurgel do Amaral. No processo, ao qual o EL PAÍS teve acesso, a defesa de Cosme alega que a tentativa de latrocínio constitui um acidente de trabalho, ainda que não estivesse cumprindo sua jornada naquele momento. Argumenta que, por se tratar de um acidente, seu contrato de trabalho deveria ser mantido por no mínimo 12 meses, conforme prevê a legislação. Assim, devido à suposta demissão antes do tempo, demandava indenização por danos morais.
A defesa de Cosme também apresentou outros pleitos. Disse que trabalhador possuía um intervalo de apenas 30 minutos de almoço em uma jornada que ia, em tese, das sete horas da manhã até quatro da tarde entre segunda e sexta, e de sete às onze da manhã aos sábados. E por isso pedia para receber horas extras. Por fim, também apontou para o fato de que Cosme teve sua carteira de trabalho assinada entre abril de 2011 e abril de 2013 e, depois, entre fevereiro de 2014 e novembro de 2016 — uma fotocopia do documento de trabalho comprova o que diz. A defesa garante que, no período em que não estava registrado, Cosme continuou trabalhando na fazenda, mas que não recebeu as verbas rescisórias, como 13º salário proporcional, referente a este período. Assim, somando indenizações por danos morais e verbas rescisórias por receber, Cosme pedia na Justiça um total de 50.000 reais de seu antigo patrão.
O juiz José Cairo Junior, da 3ª Vara do Trabalho de Ilhéus, deu razão ao antigo patrão. Segundo disse o magistrado em sua sentença, o trabalhador rural não apresentou provas de que prestava serviços na fazenda durante o tempo em que sua carteira de trabalho não estava assinada. “Portanto, prevalece a tese defensiva nesse sentido, uma vez que caberia ao autor o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito”, escreveu. O juiz também explicou que os quatro tiros que Cosme levou não constituem acidente de trabalho, já que ele não cumpria sua jornada naquele momento e nem realizava trabalhos de segurança na propriedade. Ele também se vale da doutrina jurídica que diz que a segurança nesses casos é sempre responsabilidade do Estado, e não do empregador. Concluindo sua argumentação, diz ainda que “o benefício concedido pelo INSS foi o auxílio-doença genérico, código 31 e não auxílio-doença acidentário, código 91”.
Segundo uma advogada previdenciária da Bahia que acompanha o caso — ela prefere não se identificar — , o juiz não considerou o fato de que este auxílio do INSS, ainda que genérico, havia sido concedido até o dia 1º de dezembro de 2016, conforme mostra o documento anexado no processo. Até lá, o contrato de trabalho fica “suspenso”, ou seja, Cosme não poderia ter sido demitido dias antes, explica ela. Por outro lado, a defesa de Marcelo Lyra Gurgel do Amaral, ex-patrão de Cosme, garante que o trabalhador rural “declarou não ter interesse em retornar ao labor com receio de uma nova investida contra sua integridade física”. Assim, o dono da fazenda teria procedido “o seu desligamento, inclusive como forma de ajudá-lo, recolhendo a multa do FGTS e demais parcelas incidentes”.
Suposta ma fé
Em sua decisão, o magistrado também argumenta que Cosme informou em seu depoimento que “trabalhava das 07h às 12h e das 13h às 16h, de segunda a sexta-feira” e que “aos sábados trabalhava até às 11h e não passava desse horário”. Isso significa, segundo o juiz José Cairo Junior, “que o autor alterou a verdade dos fatos, pois em sua declaração inicial diz que só gozava de 30 minutos de intervalo” para o almoço. Assim, não só indeferiu a demanda por pagamento de horas extras como interpretou que Cosme vinha agindo com má fé em sua demanda. “Sendo assim, reputa-se o reclamante litigante de má fé, condenando-o ao pagamento de uma indenização por danos morais, ora fixada em 5% sobre o valor da causa, ou seja, 2.500 reais”.
Com base nisso, o magistrado também indeferiu “o pleito de concessão dos benefícios da justiça gratuita”, uma vez que é “incompatível como o comportamento desleal do reclamante”. Mas, como lembrou o próprio magistrado, Cosme está desempregado — o que lhe dá o direito de requerer o benefício. Assim, além dos 2.500 reais que terá de pagar por supostamente ter agido de má fé, terá de desembolsar outros 5.000 reais em honorários de sucumbência e outros 1.000 reais em custas processuais, segundo determinou o juiz. Caso não tenha este valor, o trabalhador rural deverá entrar na lista de devedores da União e ter bens — caso tenha algum — bloqueados.
A mesma advogada que conversou com o EL PAÍS diz que, em processos trabalhistas envolvendo trabalhadores rurais, é bastante comum casos de nervosismo durante o depoimento, o que pode gerar contradições com a própria demanda inicial. Já a juíza do Trabalho Eloina Machado explica que, ao contrário de seu colega, não teria interpretado que houve má fé de Santos, já que ele acabou prejudicando a si mesmo em seu depoimento.
Cosme Barbosa dos Santos pode recorrer da decisão. Mas para entrar com o recurso deverá imediatamente pagar os 1.000 reais em custas processuais, algo que a reforma trabalhista prevê mesmo caso este trabalhador tivesse obtido o benefício da Justiça gratuita.
Fonte: El País