Novos instrumentos de investigação e parcerias para operações conjuntas ajudam a desmontar os conluios
A defesa da concorrência no Brasil só deslanchou na década de 1990, superada a ilusão do controle arbitrário de preços como estratégia anti-inflacionária, especialmente pelos governos militares. Criado em 1962, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) levou 37 anos para aplicar a primeira condenação por formação de cartel.
O interessante é que a denúncia feita pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da Fazenda partiu de comunicado das próprias empresas. Em julho de 1996, a Seae foi informada pelos dirigentes do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS) e de algumas indústrias do setor de que haveria, no mês seguinte, um aumento uniforme de 8% no preço do aço. A Seae chegou a alertá-los de que essa conduta poderia ser enquadrada como crime contra a ordem econômica. Mas as empresas não reformularam seus planos.
O caso ficou conhecido como Cartel do Aço. O Cade estabeleceu multas de 1% sobre o faturamento bruto de três grandes siderúrgicas: a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), no montante de R$ 22,1 milhões (a valores da época), a Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais (Usiminas), em R$ 16,1 milhões, e a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) em R$ 13,1 milhões. A condenação administrativa foi confirmada em 2010 pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região e as empresas entraram com novos recursos na Justiça.
Busca e Apreensão
Mas foi o Cartel das Britas, em São Paulo, que provocou um prejuízo calculado em R$ 80 milhões, entre 2000 e 2003, que colocou em prática o instrumento de busca e apreensão nas dependências das empresas e de sindicatos para obtenção de provas, segundo o coordenador-geral de Análise Antitruste do Cade, Ravvi Madruga.
Mudanças na Lei 8.884/1994, que transformou o Cade em autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, asseguraram a possibilidade de operações conjuntas com Ministério Público, Polícias Federal e Civil e outros órgãos governamentais para combater os cartéis. E deram autorização legal para que o órgão pudesse adotar acordos de leniência com o fim de estimular as denúncias formuladas por integrantes do próprio cartel.
Com esses instrumentos, já adotados por autoridades antitruste de outros países, o Brasil priorizou o combate aos cartéis. Outro caso simbólico na história do Cade foi o do Cartel de Vigilantes na região metropolitana de Porto Alegre. De acordo com Madruga, essa foi a primeira investigação a combinar um acordo de leniência com busca e apreensão.
As denúncias foram feitas ao Ministério Público estadual por um funcionário e o proprietário de uma das empresas do cartel. As provas obtidas confirmaram os acertos entre as firmas para participar de licitações, especialmente da Secretaria Municipal de Saúde da capital gaúcha e da Superintendência da Receita Federal.
O Cade condenou 16 empresas, três associações comerciais e 18 pessoas físicas por formação de cartel. E aplicou multas de 15% sobre o faturamento bruto das empresas em 2001, sendo que as líderes do cartel foram punidas com um acréscimo de 5% nas multas. Os dirigentes foram multados em percentuais que variaram entre 15% a 20% do valor pago pelas pessoas jurídicas. Estas foram proibidas por cinco anos de participar de concorrências públicas. As multas atingiram mais de R$ 40 milhões, a valores da época.
Leniência e corrupção
O coordenador-geral de análise antitruste do Cade explica que se a empresa ou sindicatos, associações e outros tipos de pessoa jurídica, como conselhos de categoria profissional e ONGs, procuram a autarquia para confessar um crime, aquela que teve a iniciativa pode ganhar imunidade administrativa e penal.
— A leniência é apenas para a primeira. As outras empresas podem fazer acordo com o Cade. É diferente da leniência praticada por outros órgãos para os casos de corrupção, onde pode haver mais de uma empresa beneficiada — compara Madruga.
A imunidade penal é concedida, segundo o coordenador do Cade, porque se a pessoa que procura o órgão não tiver proteção, ela ficará isenta da multa administrativa que varia de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões, fixada quando a agência antitruste não consegue aplicar a multa proporcional ao faturamento da empresa, com percentual de 0,1% a 20%. De qualquer forma, poderá ser processada criminalmente, com penas que variam de dois a cinco anos. Isso desencorajaria essas iniciativas, avalia Madruga.
Combustíveis
A tarefa de identificar e desmantelar um cartel, considerada a conduta anticompetitiva mais nefasta para os consumidores e para a economia, por acarretar prejuízos e inflação, não é nada fácil, segundo Madruga. Mesmo o setor mais denunciado pelos consumidores, não só no Brasil mas no mundo, o de combustíveis, com preços à mostra para quem abastece, exige investigações cuidadosas e demoradas.
Durante uma investigação sobre adulteração de combustíveis, em 2000, o Ministério Público de Santa Catarina percebeu, em conversas gravadas, que donos de postos estavam combinando preços. Enviou as gravações à Secretaria de Direito Econômico (SDE), mais tarde absorvida pelo Cade. Apenas três anos depois, com provas “irrefutáveis” sobre o cartel, a agência antitruste condenou o sindicato do setor no estado, as empresas e seus proprietários.
Outro caso que ganhou destaque foi o desmantelamento do cartel de postos de gasolina em João Pessoa (PB). Operação conjunta entre os órgãos de defesa da concorrência, PF e MP da Paraíba comprovou os indícios de conluio entre um grupo de donos de postos de gasolina na capital paraibana. Batizada de Pacto 274, em referência ao preço combinado entre eles de R$ 2,74 por litro de gasolina, a investigação de 2007 detectou manobras do cartel para eliminar concorrentes e fixação de preços, que vinham ocorrendo há pelo menos 10 anos.
Conforme publicação do Cade, a operação reuniu 190 agentes dos vários órgãos, com atuação em 26 locais diferentes, e trouxe benefícios evidentes aos consumidores, O preço médio da gasolina caiu para R$ 2,37 em dezembro de 2007, “a maior redução de preços de combustíveis da história do Brasil desde a liberalização de preços do setor, ocorrida ao final da década de 1990”. O caso é apontado como bom exemplo da eficácia do sistema de defesa da concorrência no país.
Operação Dubai
Em 2015, uma operação conjunta entre o Cade, a PF e o Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado do MP do Distrito Federal e Territórios ( Gaeco – MPDFT) iniciou uma ofensiva sobre o cartel de combustíveis no DF, comandado pela Cascol Combustíveis para Veículos Ltda. Quase dois anos depois, o grupo empresarial fechou um acordo, formalmente intitulado de Termo de Compromisso de Cessação (TCC),
A empresa e seus sócios devem recolher cerca de R$ 90,5 milhões ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos ( FDD), cooperar “ plenamente” com as investigações do Cade até o final do processo administrativo, ainda em andamento, vender parte de seus postos localizados em pontos importantes do DF para reduzir a concentração de mercado e adotar maior profissionalismo na gestão.
A Cascol também fechou acordo com o MPDFT, prevendo pagamento de multa de natureza reparatória de R$ 58,3 milhões, mas há, entre os estudiosos do setor, reservas a esse temo de ajuste. Só em março do ano passado, o Cade recebeu formalmente cópias dos documentos apreendidos pela PF durante a Operação Dubai. O material ainda está sendo analisado,
Tô contigo!
Embora os cartéis sejam a conduta contra a concorrência mais conhecida e investigada, há outras que também estão na mira do Cade. Uma delas é a que ocorre quando uma empresa líder de mercado impõe estratégias de negócio que objetivam excluir concorrentes e criar barreiras para a entrada de novos competidores.
Essa conduta é classificada como anticompetitiva unilateral. Mas para o seu enquadramento, o Cade verifica qual o poder de mercado da empresa, se as ações desenvolvidas por ela possuem potencial para gerar dano à concorrência, mesmo que ainda não tenha ocorrido, e analisa as justificativas para aquela estratégia empresarial.
Um exemplo de conduta unilateral, com grande repercussão, foi o da Ambev, líder do mercado de cervejas. Em 2009, ela foi punida com multa de R$ 352,6 milhões, o correspondente a 2% do faturamento bruto da empresa em 2003, ano anterior ao processo administrativo aberto pelo Cade. O foco foi o programa de fidelidade adotado pela Ambev, chamado Tô Contigo.
O programa oferecia descontos e bonificações a bares, restaurantes e outros pontos de venda em troca de exclusividade e mínimo de 90% das cervejas deveriam ser da Ambev. O Cade entendeu que essa fidelização induzia o fechamento de mercado, gerando prejuízo à concorrência e aos consumidores. E além de multar, exigiu que a empresa encerrasse o programa.
Ações conjuntas
Com uma estrutura enxuta — são 212 servidores, dos quais 128 para atuar na área fim, e 121 terceirizados — o Cade tem buscado parcerias institucionais e obtido bons resultados no desmantelamento de cartéis de combustíveis em todo o país. Publicação do Cade lista, entre as operações para desmontar acordos espúrios no varejo, a Medusa (2007), em Curitiba, com apoio da Polícia Civil do Paraná; a Madona (2008), em Cuiabá, com a participação do Ministério Público ( MP) de Mato Grosso; a Mão Invisível (2008), em Belo Horizonte (MG), com a ajuda da Polícia Federal; a Hefesto (2011) em Natal e a Vulcano (2012) em Mossoró, ambas com auxílio do MP do estado do Rio Grande do Norte e da PF.
Há também operações voltadas para impedir os cartéis na revenda e distribuição de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), conhecido como gás de cozinha. Duas operações foram realizadas em 2010: a Chama Azul, com o MP da Paraíba e PF, e a Júpiter, em parceria com o MP do Distrito Federal e a Polícia Civil do DF.
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