O STF analisa, nesta semana, a validade de uma lei de Rondônia que proibiu linguagem neutra em escolas do Estado. A lei 5.123/21 estabelece “medidas protetivas ao direito dos estudantes do Estado de Rondônia ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta”.
A linguagem neutra a que a norma se refere seria, por exemplo, o uso de “todes” em vez de todas e todos, ou “elu” em vez de ela ou ele.
No Supremo, uma liminar de Fachin derrubou a lei em novembro de 2021, por violação de competência da União (veja o voto).
Agora, o plenário formou maioria para manter a suspensão.
Acerca do tema, Migalhas decidiu ouvir especialistas da língua portuguesa. Não para pôr um fim no debate, mas justamente para fomentá-lo.
Localização do preconceito
A professora Maria Augusta Bastos de Mattos, doutora em linguística pela Unicamp, explica que as alterações na língua portuguesa, ou seja, a medida daquilo que é considerado gramatical ou agramatical, são regidas pela Academia Brasileira de Letras.
“A régua é a escrita dos autores clássicos e, mais ultimamente, o uso da língua pelos meios de comunicação: o que é usado e repetido e ‘justificado’ pode acabar sendo integrado ao vocabulário/ao modo de falar/ao sentido/à pronúncia/à regência de uma camada da população. Pense no caso da expressão ‘risco de morte’ que engoliu o ‘risco de vida’, seguindo um raciocínio lógico. Ora, a língua não segue uma lógica. Seguisse, e todas as dez línguas derivadas do latim seriam uma só…”
Para Maria Augusta, a ideia de colocar uma lógica na língua e imputar a ela um alcance questionável (o de mudar comportamentos sociais) está por baixo dessa postura de agora, de ver a língua como um instrumento de dominação eivado de preconceitos. “O uso da língua – o discurso – ele sim é ideológico (e basta ler os estudos de Análise do Discurso para entrar nesse debate). A língua – a estrutura – é o que é, fixa neste momento, carregando a história consigo mas sem ‘culpa’.”
Na análise da professora, como hoje tudo é democraticamente debatido nas redes sociais, “onde se misturam especialistas e amadores, opiniões mais refletidas e outras sem reflexão e onde – neste caso específico do debate sobre ‘linguagem neutra’ – há ainda os militantes de uma causa e o consequente medo de ser taxado de preconceituoso, o debate fica acalorado e a estrutura da língua parece que está a ruir”.
Quando perguntamos à professora se acredita que a força do debate poderia ser capaz de mudar a língua, ela afirmou: “eu diria que tudo é possível na atualidade, em que já vimos coisas impensadas”.
Maria Augusta destaca, por fim, alguns pontos do debate:
1) a localização da questão do preconceito na língua e não na sociedade;
2) a imputação da mesma carga ideológica da questão do gênero ao gênero gramatical;
3) uma visão ingênua da língua misturada a uma análise linguística: dizer que o O indica masculino e o A indica feminino.
Elemento social
Para o professor de língua portuguesa e revisor do STJ Wanderson Melo, língua e sociedade não são elementos separados; devem, portanto, ser analisados conjuntamente.
“Quando a gente tem, em uma sociedade, diversos grupos diferentes entre si que querem se sentir representados, a gente começa a entender um pouco melhor a linguagem neutra.”
Para Wanderson Melo, a demanda sobre o tema surgiu a partir da percepção de que a atual forma de designar gêneros não é suficiente para os diversos grupos. Ele destaca que o debate sobre linguagem neutra não é exclusivo da língua portuguesa – acontece também em outras línguas.
O professor também questiona se é possível o Estado, por meio de uma lei, determinar como as pessoas devem se manifestar linguisticamente.
Ele finaliza dizendo que o debate sobre linguagem neutra nada tem a ver com falta de norma padrão.
“Muita gente quer desqualificar a possiblidade de haver linguagem neutra dizendo que a língua portuguesa vai se perder. Essas pessoas estão se esquecendo de que o que vai fazer um texto ser ruim ou não é sua falta de clareza, sua falta de concordância verbal. (…) O que eu realmente acredito é: esse debate hoje só acontece porque pessoas estão cada vez mais conscientes de suas condições e conscientes de que elas fazem parte, sim, da sociedade, e que não vão ficar à deriva.”
Gênero gramatical x Identidade de gênero
A professora de língua portuguesa Lara Brenner afirma que o gênero gramatical masculino não responde só e obrigatoriamente a pessoas do sexo masculino, mas também a um público misto ou genérico. “Todo mundo sabe isso intuitivamente por sua gramática internalizada. Essa forma, em nosso idioma, portanto, já é neutra.”
“Se observarmos palavras como ‘elefante’, ‘reitor’, ‘bacharel’, ‘japonês’, ‘ateu’, ‘herói’, perceberemos que é justamente a AUSÊNCIA de uma marca distintiva de masculino que nos permite notar sua neutralidade.”
Na opinião de Brenner, é por isso que, em uma palavra como “todos”, por exemplo, o O não reduz o sentido ao público masculino, e por isso não é necessário o “todes”.
Veja a explicação:
A professora ainda acredita que “o argumento a favor da linguagem supostamente neutra se contradiz em sua própria origem”. Se assim fosse, deveriam ser criadas terminações diferentes a cada uma das dezenas de gêneros existentes.
Para ela, o uso de uma “linguagem artificial” em sala de aula fere o princípio dinâmico e orgânico das mudanças ocorridas na língua ao longo do tempo. “É bom mesmo haver leis que estabelecem medidas protetivas ao direito dos estudantes.”
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