O mês de férias, quando as crianças deixam de ir à escola todos os dias, deveria ser sinônimo de mais tempo livre para elas. No entanto, mesmo durante esse período, o direito de brincar, garantido pelo artigo 31 da convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, nem sempre é respeitado. Brincar não significa uma agenda de atividades recreativas. É, na verdade, deixá-las descobrir o mundo pela linguagem infantil. Nos últimos 40 anos, o tempo dedicado às brincadeiras diminuiu em 25%, de acordo com a Academia Americana de Pediatria. Cidades sem infraestrutura urbana adequada, pais mais ocupados e intensificação do uso de aparelhos eletrônicos criaram gerações cada vez mais distantes do chamado “brincar livre”.

Esse conceito mostra a distorção histórica que o ato de brincar adquiriu nas últimas décadas e significa apenas o direito da criança de realizar brincadeiras sem a intervenção de adultos, sendo protagonista ao poder escolher como, com quais materiais e com quem quer brincar. “O brincar é a linguagem da criança, é a maneira como ela descobre e interage com o mundo, então não existe um momento para isso. Nós adultos é que costumamos distinguir e separar, como se brincadeira não fosse uma coisa séria, não tivesse um papel relevante”, afirma a presidente da Associação Brasileira pelo Direito de Brincar (IPABrasil), Janine Dodge.

Ao explorar o mundo a partir das brincadeiras, a criança coloca em desenvolvimento habilidades físicas, sociais, emocionais e intelectuais. Elas aprendem sozinhas sobre o cumprimento de regras, a lidar com desafios e frustrações, a conviver com as diferenças. São apresentados à vida social e cultural, na medida em que as brincadeiras também significam o repasse de tradições. E não necessariamente precisam de brinquedos para criar um ambiente lúdico. “A criança sempre vai achar uma rachadura (num lugar não propício ao brincar). Ela pode brincar mais isolada, menos com o próprio corpo, mas vai encontrar formas de brincar”, afirma a coordenadora do programa Território do Brincar, do Instituto Alana, Renata Meirelles.

Casas de brincar - espaços privados criados para o brincar livre - se multiplicam no Recife. Foto: Léo Malafaia/Esp.DP.
Casas de brincar – espaços privados criados para o brincar livre – se multiplicam no Recife. Foto: Léo Malafaia/Esp.DP.

O papel do adulto é oferecer à criança um ambiente seguro e propício à brincadeira, estar disponível para quando ela convidá-lo a participar e garantir tempo para livre para isso. Cabe ainda ao poder público, de acordo com a própria convenção da ONU, criar espaços adequados e seguros, o que não quer dizer apenas uma praça com um escorrego e um balanço, mas um ambiente planejado para ser explorado e descoberto. Um exemplo do que está sendo feito na capital pernambucana é a criação de áreas de brincar, dentro do projeto Mais Vida nos Morros. “A cidade tem uma visão de longo prazo, para os 500 anos, que tem como eixo de ações a primeira infância. Estamos planejando espaços públicos a partir da perspectiva das crianças e engajando-as na transformação dessas áreas”, diz o secretário-executivo de Inovação Urbana do Recife, Tullio Ponzi.

Famílias que vivem em bairros sem opção de espaços públicos adequados têm migrado para outras regiões da cidade. É o caso da jornalista Paula Bivar, 35 anos. Moradora do bairro de São José, área central do Recife, e mãe de Catarina, 3, e Clara, 2. Ela leva as filhas até a Zona Sul para que elas possam brincar com mais liberdade. A solução encontrada por Paula é a mesma de muitos pais que vivem em apartamentos: ir para casas de brincar (espaços privados criados para o brincar livre). “O espaço de lazer do meu prédio não tem areia, e as opções de passeios eram shoppings e as poucas praças e parques localizadas próximos à minha casa. O simples está em falta. Aqui, elas têm acesso à natureza”, conta Paula.

Espaços como esse têm se multiplicado pela cidade. “O conceito é fazer com que a criança escolha os itinerários da brincadeira, isto é, que seja o menos direcionado possível. Ela escolhe como, com o quê e com quem brinca. O que oferecemos é o espaço, o tempo e os materiais que, muitas vezes, eles não têm acesso em casa”, explica a proprietária da casa de brincar Novo Quintal, do Pina, Maria Fernanda Galdêncio.

Formação
Criado há três anos, o projeto Mais Lindeza tem formado cuidadores do brincar em Pernambuco. Ao todo, cerca de 50 pessoas já foram capacitadas. As atividades do projeto englobam ainda eventos abertos, que estimulam a relação afetiva das pessoas com a cidade; capacitações com médicos e professores além de levar o brincar livre a festas infantis. Escolas e hospitais públicos do estado já receberam a formação e multiplicam o conceito de brincar livre em diversos ambientes. “Esse período de férias escolares desperta um alerta para a sobrecarga que às vezes é colocada para as crianças. É importante deixá-las livres, sem compromissos e responsabilidades. O ócio é fundamental na infância”, destaca a arteterapeuta e idealizadora do Mais Lindeza, Gabriela Vasconcellos.

 (Foto: Estácio do Recife/Divulgação.)

Entrevista // Dafne Herrero, doutora e mestre pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e consultora do brincar pela International Play Association Brasil 

Como a brincadeira ajuda no desenvolvimento da criança? 
É no brincar que a criança recebe informações, absorve o conhecimento, elabora estratégias e devolve respostas pelas brincadeiras que ela propõe, desenvolvendo sua autonomia. A possibilidade de jogar a bola diversas vezes, pular corda, correr, repetir, repetir e repetir aumenta o repertório de possibilidades motoras, cognitivas e emocionais. Aprender a lidar com essas situações oferece à criança resiliência para enfrentar situações diversas, para elaborar ideias e ter uma maior inteligência para conversar, se expressar e ter proatividade.  A criança nos conta algumas coisas pelo brincar. Uma delas são as suas dúvidas, quando, por exemplo, a criança põe a boneca de castigo e nos olha para que aprovemos ou não aquela situação. Neste caso, podíamos orientar que a criança “converse com a boneca” e entenda por que ela fez alguma malcriação. O importante é focar no acolhimento do sentimento e não na reação de chute, tapa ou jogar o brinquedo no chão para ir de castigo. Na dúvida, tente sempre entender o que levou a criança reproduzir essas situações na brincadeira. Outra questão que ela mostra seus conhecimentos adquiridos, quando, por exemplo. exibe em uma brincadeira de escola a letra que está aprendendo ou, ainda, em uma brincadeira de carrinho, em que mostra suas habilidades em interpretar as cores dos faróis e seus significados para o trânsito. Suas impressões acerca de diversos assuntos também aparecem, por exemplo, quando fala “não pode jogar lixo no chão, não é, mamãe? O planeta chora”. Assim, nos mostram a construção de seus valores de uma maneira linda e espontânea e na prática. Além disso, as crianças dão diversas dicas sobre os sentimentos que afloram em cada situação de crescimento e desenvolvimento quando a brincadeira ocorre espontaneamente. Através do brincar, ela vivencia “de verdade” tudo o que ela propõe para o brincar de “faz de conta” para estabelecer acordos, trocar ideias e integrar-se à cultura e ao seu grupo.
Há diferença entre o que acontece de forma planejada e o que acontece de maneira mais orgânica? 
Se conduzido pela criança, é brincar. Se pelo adulto, é atividade recreativa. A principal diferença para que a gente fale em brincar espontâneo, brincar livre ou brincar orgânico seria realmente o fato de ser conduzido pela criança, ter tido uma motivação intrínseca, sem expectativa de resultados ou com resultados definidos pela criança. É algo cujo valor é determinado pela própria criança, sem material específico, ou seja, a criança como protagonista. O brincar é um fim em si mesmo. A criança brinca porque brinca.
Que tipo de consequência o “não brincar” traz para o desenvolvimento da criança? 
O brincar é um indicador de saúde. Se uma criança entrar agora em um ambiente e começar a brincar, ela me dá evidências claras de que está à vontade, confia no espaço e nas pessoas que estão por perto, possui repertório motor de movimentos e apresenta desenvolvimento cognitivo para uma sequência de exploração e brincadeira. Já se uma criança está isolada ou não quer brincar, as evidências são claras de algo não está indo bem. É através da brincadeira que a criança entende o mundo e que o mundo entende a criança. Se ela não está brincando, ela não está experimentando, criando repertório, além de não desenvolver a confiança e a autonomia.
Por que inserir a brincadeira no rol de políticas públicas prioritárias? 
Muitos estudos evidenciam que a diminuição do tempo de brincar das crianças tem relação também com a inexistência ou existência inadequada de espaços para o brincar livre e na natureza. Em contato com a natureza, recebemos uma estimulação sensorial incrível: cores, formas, tamanhos, cheiros, texturas, distâncias, luminosidades, temperaturas. Tendo esse leque de opções, a criança acaba respondendo com maior riqueza de conteúdo, pela maior quantidade de estímulos. Uma criança que se movimenta, movimenta também suas emoções, respeita o ambiente e tem maior tendência a focar nas atividades, pois está envolvida em um ambiente acolhedor e que traz novidades a cada estação ou fim de tarde. Em ambientes fechados, com poucas cores, pouca variabilidade de temperatura e luminosidade, sons que não nos transportam ao natural e com uma restrita opção de brincadeira, terá menos repertório e menos chances de adquirir habilidades cognitivas e motoras. É necessário que exista um ambiente seguro para o brincar em locais públicos, acessibilidade para crianças e adultos usarem brinquedos em praças. Muitas vezes, vemos placas que proíbem crianças maiores de 10 anos de usarem os brinquedos. Onde então elas brincarão? Vemos também a situação de conservação inadequada dos espaços públicos que impede crianças com restrição de mobilidade de brincar.
Há diferenças na forma de pensar e estimular a brincadeira com as crianças de diferentes classes sociais e faixas etárias? 
As brincadeiras trazem muito da rotina e da cultura das crianças. Há uma grande parte que será compartilhada por todos para o desenvolvimento motor e cognitivo. Porém, existe os vieses social e emocional que caracterizam alguns grupos e os complementam quando se encontram em ambientes comuns a todos. As faixas etárias têm demandas e interesses diferentes e é muito importante que eles sejam identificados e respeitados. Não há como exigir que uma criança fique em silencio durante um grande período quando ela está na faixa etária de desenvolver o equilíbrio, força e coordenação. O desenvolvimento dos aspectos motor, cognitivo, social e emocional é interdependente.
Como esse debate sobre a importância sobre o brincar pode ser incluído nas ações e políticas públicas, por um lado, e, por outro, na rotina familiar? 
Na verdade, só existe um lado: o brincar na infância, pois ‘para ser humano é preciso ter sido criança’. Saber o impacto e as funções que o brincar desenvolve pode trazer à tona uma conscientização desta importância. Alguns exemplos são ler histórias para nomear sentimentos e a criança memorizar como uma estratégia de como agir frente a alguma situação. Outros exemplos são jogar bola e esperar a vez mostra fisicamente como um diálogo acontece. Ao esperar a sua vez de jogar, você está memorizando que você respeita a vez do outro e como ele vai jogar. Amarelinha, pega-pega, esconde-esconde estimulam a entender as regras, os direitos de cada um e a elaborar estratégias para o brincar e fazer diferente da vez anterior, aprimorando suas habilidades. Lembrando sempre que a criança só brinca com quem ela confia e que durante a brincadeira. Isto é, ‘o brincar nos faz iguais’.