Semanas depois de assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR), no fim do ano passado, Raquel Dodge decidiu que era preciso investigar as causas do aumento da violência no Estado e na cidade do Rio de Janeiro.
Para isso, ela reuniu um grupo de cinco procuradores e lhes deu a missão de investigar a atuação das organizações criminosas que atuam no Estado, como o Comando Vermelho (CV) e os Amigos dos Amigos (ADA), e também as forças de segurança locais – o porquê de elas estarem falhando no enfrentamento.
O procurador José Maria Panoeiro, de 47 anos, foi um dos escolhidos por Dodge para a empreitada. Em conversa com a BBC Brasil, ele é enfático: não há como explicar as cenas cotidianas de traficantes armados com fuzis nas favelas cariocas sem citar o grave problema de corrupção nas forças de segurança.
Panoeiro evita generalizações, mas diz que são frequentes as operações para apreender armas que não dão em nada graças ao vazamento de informações, e cita o caso de um inspetor de polícia que se dá ao luxo de alugar um jatinho privado para uma viagem de fim de semana.
Um dos objetivos do grupo criado por Dodge, diz ele, é descobrir o porquê de a Polícia Federal não estar sendo efetiva na investigação do tráfico de armas no Rio. O procurador não comentou os resultados colhidos até agora pela investigação, que é confidencial.
Na última sexta-feira, o governo decretou uma intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro, cujo comando está sob responsabilidade do comandante militar do Leste, o general Walter Souza Braga Netto. Ela está programada para durar até o dia 31 de dezembro deste ano.
Para o procurador, os nove meses de atuação militar dificilmente resolverão o problema, “salvo se acontecer um milagre”. Além do combate à corrupção policial, ele diz que uma solução mais definitiva passaria também pela urbanização das áreas de favela. Sem isso, afirma, é muito difícil que o Estado consiga oferecer segurança aos moradores.
Há 14 anos no Ministério Público Federal, Panoeiro já trabalhou em várias áreas. O caso mais famoso tocado por ele foi a investigação contra o ex-bilionário Eike Batista, ainda em 2015. Em 2016, coordenou um grupo de trabalho antiterrorismo da Procuradoria do Rio, durante as Olimpíadas. Antes de se tornar procurador da República, ele exerceu os cargos de promotor de Justiça e de delegado da Polícia Civil carioca.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil – Qual é o pano de fundo da violência no Estado?
José Maria Panoeiro – Me parece ser (entre outras causas) um problema direto de corrupção policial. Sem querer generalizar, mas há uma série de atividades onde aparecem agentes do Estado dando cobertura a criminosos, recebendo remuneração de criminosos.
E isso fica patente em algumas operações que você tem, com as Forças Armadas cercando determinados territórios, com informes sobre a existência de fuzis, e no final das contas a apreensão (de armas) é ínfima, beira o ridículo, ou não há nenhuma apreensão. O que significa que houve vazamento de informação. E vazamento da parte de quem? Só pode ser da parte de agentes do Estado.
Então, esse é um aspecto que é fundamental. Não tem como acreditar que esta quantidade de armas chega ao Rio sem que haja um mínimo de conivência de agentes do Estado que trabalham na área de segurança.
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) começou a fazer bloqueios nas rodovias e começou a apreender fuzis e munição em sequência. (…) Se a PRF começa a encontrar fuzil, por que não eram encontrados antes? Porque estava havendo algum tipo de acerto que nós não conseguimos ver, mas provavelmente havia algum tipo de acerto corrupto por trás disso.
BBC Brasil – O que vocês investigam nesse Grupo Estratégico do Ministério Público Federal?
Panoeiro – O grupo foi criado (em outubro passado, pela procuradora-geral Raquel Dodge) para tentar fazer um diagnóstico de quais são os problemas, e (explicar) por que é que o quadro chegou neste ponto. Entender por que é que quase não há investigação de tráfico de armas, na Polícia Federal. Por que é que esses canais de investigação estão falhando.
Será que eles não estão produzindo um tipo de informação que é inútil?
Do tipo: eu prendo um sujeito com vários fuzis na (Via) Dutra e simplesmente comunico isso para a Justiça Estadual, e vendo isso como um porte de arma, como se fosse um cidadão qualquer que está circulando na rua com uma arma na cintura sem ter autorização para isso.
Quando na verdade a gente está diante de um transporte no contexto de uma importação (de armas), ou seja: aquilo ali é uma conduta de tráfico de armas, que mereceria ser investigada para saber quem é o comprador, para onde vai, de onde veio.
Mas faz-se um corte na informação e trata-se isso como o que não é: um porte de arma de fogo.
Então o foco do grupo é determinar onde estão os gargalos da investigação, que não se chega a bom termo e o crime vai, simplesmente, se expandindo.
BBC Brasil – Há tanta corrupção no aparato de segurança do Rio quanto se diz?
Panoeiro – É difícil quantificar corrupção, mas eu vou te dar um exemplo bem simples.
Se você tem um agente policial, um inspetor de polícia com um salário que gira em torno de R$ 4 mil, R$ 5 mil, R$ 6 mil, R$ 8 mil que seja, esse sujeito não tem condições de alugar um jatinho para ir passar um final de semana em uma cidade no interior de São Paulo.
BBC Brasil – Vocês já viram um caso desses?
Panoeiro – Já. A gente tem notícia (do acontecimento).
BBC Brasil – Qual é a dificuldade de investigar corrupção policial?
Panoeiro – Concretamente, qual é o nosso problema? Imagine que você traga para o Ministério Público Federal o seguinte: “olha, eu acho que o agente fulano de tal é corrupto, porque ele ganha tanto e ostenta um patrimônio que é absolutamente incompatível”.
Ok. É óbvio que, se o patrimônio é incompatível, é bastante provável que ele esteja envolvido em algum tipo de prática criminosa (…). Mas (para denunciá-lo) por corrupção, eu teria que flagrar o sujeito no momento em que ele estivesse fazendo isso. E eu não vou ter essa prova.
Por isso, dentro daquelas Dez Medidas Contra a Corrupção, que a Câmara (dos Deputados) acabou enterrando (no fim de 2016), uma delas era contra o enriquecimento ilícito. (Seria possível denunciar) todas as vezes que você tivesse um funcionário público com patrimônio absolutamente incompatível, e alguma ligação com uma atividade ilícita. Não precisaria necessariamente comprovar (que o servidor) praticou a atividade ilícita.
Mas por exemplo: eu tenho prova de que o sujeito se relaciona com milicianos na Zona Oeste. E o sujeito está enriquecendo. Eu já poderia, a partir daí, se o patrimônio é incompatível, se não tem nenhuma razão para ele ter o patrimônio que tem, eu poderia sancioná-lo (punir) por enriquecimento ilícito (…). Agora, o Congresso não quis.
BBC Brasil – A intervenção federal na área de segurança fará bem ao Rio?
Panoeiro – A rigor, e pelo para mim, pessoalmente, é uma questão que é muito clara, a gente tem um problema no Rio de Janeiro de você ter diversos grupos criminosos que disputam um determinado espaço. E eles, ao longo dos últimos 20 anos, esses grupos vieram se armando cada vez mais para prosseguir nessa disputa por território (…).
O problema da violência do Rio, salvo melhor juízo, salvo se acontecer um milagre, a intervenção federal, em nove meses, não vai conseguir corrigir um problema que vem de pelo menos duas décadas, (que vem) se tornando mais agudo.
BBC Brasil – Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com as Forças Armadas na rua, são comuns no Rio de Janeiro nos últimos anos. Funcionou?
Panoeiro – Na verdade, o problema de trabalhar com operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é que toda vez que você faz uma intervenção mais vigorosa naquilo que seria a função da Polícia Militar, que seria o policiamento ostensivo, você naturalmente gera uma sensação maior de segurança (…).
Há uma retração naqueles crimes que as pessoas conseguem perceber mais facilmente (crimes violentos, roubos etc.), mas não quer dizer que não estejam acontecendo crimes como o tráfico de armas, como o tráfico de drogas.
Apenas esses crimes não ficam tão visíveis quanto são nas situações em que você não tem as operações de GLO.
BBC Brasil – Qual a diferença do crime organizado do Rio para o de outros Estados brasileiros?
Panoeiro – O PCC (em São Paulo) tem um monopólio. Por isso, não precisa se armar para manter o controle territorial. Ele se arma para praticar outros tipos de delitos. Têm coisas que a gente não tem aqui no Rio, ou pelo menos não tinha, até bem pouco tempo. Roubo a carro-forte. Sempre teve em São Paulo explosão de caixa eletrônico, que é algo que está chegando aqui agora.
Na operação Furacão (apuração da qual o MPF participou em 2007, e que investigou a venda de sentenças no Judiciário do Rio) tem uma parte da investigação em que fica indicado ali que havia a postura de alguns agentes da segurança pública no sentido de meio que estimular uma briga entre as facções.
Nas interceptações (telefônicas) da investigação Furacão, foram flagrados alguns diálogos que davam a entender que eles estimulavam que houvesse um confronto entre as quadrilhas (Comando Vermelho, ADA), de modo que nenhuma delas se tornasse suficientemente grande. Que elas brigassem entre si e nunca ameaçassem o status quo da cidade (…).
BBC Brasil – Na sua opinião, o que pode ser feito para minorar o sofrimento da população do Rio?
Panoeiro – É evidente que o aumento do policiamento ostensivo (como ocorrerá na intervenção) melhoraria a percepção de segurança das pessoas. Então a gente precisaria ter uma nova visão de polícia, menos suscetível de ser cooptada pela corrupção (…).
Fora isso acho que há um problema concreto de ocupação do espaço urbano e teria que haver uma intervenção da União. O que já foi pensado, não é nada de novo.
O PAC das Favelas propunha uma urbanização, nós tivemos na década de 1990 o projeto Favela Bairro, que era também de reurbanização. Porque é inviável oferecer serviços de segurança pública na comunidade se o Estado não tem como entrar na comunidade.
Fonte: BBC
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