A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho considerou que a falta de diversidade racial no guia de padronização visual da rede de laboratórios Fleury S.A., de São Paulo (SP), é uma forma de discriminação, ainda que indireta. Para a Turma, o guia, ao deixar de contemplar pessoas negras, tem efeito negativo sobre esses empregados e fere o princípio da igualdade.
Padronização
A decisão foi proferida na reclamação trabalhista ajuizada por uma operadora de atendimento. Ela disse que, antes de exercer a função, havia passado por um treinamento treinamento de capacitação técnica e de aspectos estéticos e visuais durante 40 dias. Na segunda etapa, denominada Treinamento de Padronização Visual, em que era explicado o padrão adotado em relação a cabelos, vestimenta e maquiagem, foi distribuído um material que lhe causara estranheza, por não fazer referência à cútis ou ao cabelo da raça negra.
Um das exigências do guia de padronização era que os cabelos abaixo dos ombros deveriam ficar sempre presos. Os cabelos mais curtos, desde que não tivessem franja, poderiam ser usados soltos. Segundo a operadora, no entanto, embora seus cabelos se enquadrassem nesse caso, foi orientada a mantê-los sempre presos porque, segundo a supervisora, “chamavam muita atenção por conta do volume”. Ainda conforme seu relato, seu pedido para usá-los soltos, no estilo black power, foi negado, enquanto funcionárias de cabelos curtos lisos podiam fazê-los. Pouco depois, foi demitida sem justa causa.
Material ilustrativo
O Fleury, em sua defesa, sustentou que não tolera qualquer tipo de discriminação e que a empregada já usava o cabelo no estilo black power quando fora contratada. Segundo a empresa, o material de treinamento é meramente ilustrativo, composto de desenhos e regras a serem observadas, e as alegações da ex-empregada se deveriam à sua insatisfação com o desligamento.
Ausência de previsão legal
O juízo da 46ª Vara do Trabalho de São Paulo (SP) e o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) julgaram improcedente o pedido de indenização da operadora, por entenderem que o fato de não haver, no guia, fotos ou ilustrações de pessoas negras não demonstra, por si só, discriminação. Para o TRT, a falta de representatividade é uma questão importante e que deve ser enfrentada, mas não existe na legislação nada que determine que os documentos internos de empresas “sejam ilustrados por todas as cores”.
Ônus da prova
A decisão considerou, ainda, que a empregada não fizera prova do assédio moral alegado, e que, nos termos dos artigos 818, inciso I, da CLT e 373, inciso I do Código de Processo Civil, que tratam do ônus da prova, a conduta deve ser inequivocamente comprovada por quem a alega. Segundo o TRT, as fotos de colaboradores de cabelos lisos e compridos soltos não demonstraram discriminação, pois foram tiradas em situações diversas do atendimento a clientes, como momentos de festa e descontração, e não havia informação sobre se aqueles empregados teriam sido advertidos após o ocorrido.
Proteção especial
A relatora do recurso de revista da trabalhadora, ministra Delaíde Miranda Arantes, fez um histórico sobre a evolução da proteção ao principio da não discriminação. No plano internacional, citou a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965 (ratificada pelo Brasil pelo Decreto 65.810/1969) e a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No plano nacional, a ministra lembrou o artigo 3º da Constituição da República, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e a Lei 9.029/1995, que proíbe a adoção de práticas discriminatórias.
Representatividade
Com fundamento nesses instrumentos legais, a ministra afirmou que qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada exclusivamente na cor da pele, raça, nacionalidade ou origem étnica pode ser considerada discriminação racial. No caso do laboratório, a seu ver, a falta de diversidade racial no guia de padronização visual é uma forma de discriminação que pode ferir a dignidade humana e a integridade psíquica dos empregados da raça negra, como no caso da operadora, que não se sentem representados em seu ambiente de trabalho.
Discriminação estrutural
A ministra assinalou ainda que, no atual estágio de desenvolvimento da nossa sociedade, “toda a forma de discriminação deve ser combatida, notadamente aquela mais sutil de ser detectada em sua natureza, como a discriminação institucional ou estrutural”, praticada por instituições públicas ou privadas, e não por indivíduos, “de forma intencional ou não, com o poder de afetar negativamente determinado grupo racial”. Com fundamento nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que tratam do ato ilícito e do dever de indenizar, a relatora considerou que, ainda que de forma não intencional, o guia surtiu um efeito negativo na esfera íntima da operadora, razão pela qual deveria ser reparado o dano por meio de indenização, arbitrada em R$ 10 mil.
Aspectos técnicos
O ministro José Roberto Pimenta ficou vencido, em razão de um aspecto técnico que, a seu ver, impedia o acolhimento do recurso. Para o ministro, o ponto essencial da fundamentação do TRT foi a questão do ônus da prova, atribuído, pelo TRT, à empregada, contrariamente ao que prevê a jurisprudência do TST. “Porém, não há, no recurso de revista, indicação de violação do artigo 818 da CLT ou do artigo correspondente do Código de Processo Civil de 2015”, explicou o ministro. “Por essas razões estritamente técnicas, apresento divergência para não conhecer do recurso de revista”
(Matéria atualizada em 10/12 para acréscimo de informações e da fundamentação do voto vencido)
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