Volta e meia retornam aos fóruns acadêmicos as discussões acerca das resistências recíprocas entre estudiosos do Direito do Consumidor e estudiosos da Law & Economics. Da parte dos primeiros, salvo exceções, é comum verificar as alegações de que a Law & Economics seria necessariamente contaminada por uma ideologia de livre mercado em seu aspecto mais radical, assim como que ela importaria uma submissão do Direito à Economia, à Matemática ou à Estatística, com prejuízo da dogmática e dos valores resguardados na lei. Da parte dos segundos, alguns deles realmente imbuídos de uma concepção de Estado mínimo, questionam-se as bases da própria disciplina consumerista desenvolvida no Brasil, pondo em dúvida valores escolhidos pelo legislador e, em alguns casos, condenando o próprio sistema protetivo, que considera um sujeito vulnerável digno de maior proteção em suas relações jurídicas. Essas posturas demonstram desconhecimento de parte a parte, com prejuízo ao desenvolvimento da política consumerista nacional (o que, supõe-se, seja o objetivo dos estudiosos desse campo) e, ao fim e ao cabo, à própria solidez do mercado nacional (o que, supõe-se, interessa aos estudiosos de Law & Economics).
Vamos às bases. A Constituição de 1988 consagra o capitalismo e a economia de mercado no Brasil. Quanto a esse ponto, não há o que discutir. O mesmo ocorre em relação à inédita disciplina e reconhecimento dos direitos dos consumidores, alçado, pela primeira vez no constitucionalismo brasileiro, à condição de direito fundamental.
A compreensão sistemática desses dados e circunstâncias é capaz de, por si só, evidenciar a inadequação de algumas dessas mencionadas resistências. A proteção do consumidor no Brasil atende a preceitos constitucionais, na linha da consagração de direitos econômicos e sociais que se deu em nível global, na evolução do reconhecimento dos direitos humanos. Sob o aspecto estritamente jurídico, não há como negar sua vigência no ordenamento jurídico nacional. Ademais, sob o aspecto econômico, a tutela do consumidor surge, de forma geral, como um necessário subproduto do próprio capitalismo, na medida em que são identificáveis práticas predatórias no jogo de mercado e que conduzem a distorções indesejáveis para a sua própria subsistência ou para a manutenção do melhor nível possível de competição. Países como os Estados Unidos optam por enfrentar esses problemas prioritariamente por meio de normas antitruste. Outros, alinhando-se, sobretudo, ao desenvolvimento dos direitos humanos, fazem-no de forma dual, por meio de normas concorrenciais e de normas consumeristas, como é o caso do Brasil. Portanto, para além das razões de ordem humanista que motivaram o reconhecimento de direitos econômicos e sociais nas Constituições contemporâneas, como é o caso brasileiro, a disciplina consumerista apresenta-se como um necessário instrumento de manutenção do próprio sistema econômico.
Quanto à alegação de que a Law & Economics importaria em uma necessária submissão do Direito aos preceitos econômicos, é de se evidenciar que o Direito do Consumidor produzido e aplicado no Brasil já utiliza, corriqueiramente, mesmo que não o perceba, as premissas assentadas na Ciência Econômica em suas análises. Exemplo contundente disso reside na própria concepção de racionalidade econômica subjacente à conduta do fornecedor. Na medida em que se propõe uma certa sanção para uma dada conduta do fornecedor no mercado, está-se valendo da concepção muito debatida em Law & Economics de que a pessoa reage a incentivos e procurará, sempre que precisar tomar decisões, optar pela solução que o favoreça (ou que “maximize seus interesses”, ou decidirá com base em “padrões de custo e benefício”). A sanção visaria, partindo-se dessa premissa econômica, desestimular condutas ou práticas. Nada mais Law & Economics do que essa ideia.
No que concerne, especificamente, à premissa da racionalidade humana, uma advertência é essencial. Se, por um lado, alguns estudiosos da Law & Economics criticam o princípio consagrado no Código de Defesa do Consumidor que pressupõe a vulnerabilidade do consumidor na relação jurídica que estabelece com o fornecedor, e, por outro lado, alguns estudiosos de Direito do Consumidor constroem certas soluções ou análises tomando por pressuposto que o comportamento do consumidor é ou será sempre racional, desenvolvimentos recentes daquela escola debruçam-se sobre a chamada “teoria da decisão racional” e oferecem insights relevantíssimos para a compreensão adequada do processo de tomada de decisão humana. Esses estudos, que compõem a denominada Escola da Economia Comportamental (em inglês, Behavioral Economics), têm demonstrado que, se a decisão humana é racional, trata-se, em verdade, de uma racionalidade limitada, capaz de conduzir suas escolhas de forma sistemática e previsível para opções em confronto com seus interesses.
De fato, se apenas recentemente a Escola da Economia Comportamental encontra espaço nas pesquisas acadêmicas brasileiras, especialmente para pesquisadores com formação jurídica, suas bases e revelações, há algum tempo, vêm ganhando expressão em outros países. Desde os trabalhos iniciais de Herbert Simon (1957), posteriormente desenvolvidos com grande repercussão por Daniel Kahneman e Amos Tversky (1970), Paul Slovic (1982) e Lowenstein (1988), uma enorme influência já se verificou, inclusive na promoção de políticas públicas, dos resultados de suas pesquisas empíricas, elaboradas a partir de uma abordagem dos problemas que se beneficia de pressupostos da Economia, da Psicologia e da Biologia, entre outras ciências. Exemplos notáveis dessa influência residem no Behavioural Insights Team[1] inglês ou no Social and Behavioral Sciences Team (SBTS)[2] estadunidense, e que constituem verdadeiros gabinetes de auxílio na tomada de decisões governamentais, em franca sintonia com Poder Executivo de seus países. Conforme nos adverte a professora portuguesa Rute Saraiva, essas iniciativas visam aproveitar “a irracionalidade e inconsistência das preferências dos agentes econômicos a favor destes”[3].
Especificamente no ponto que nos interessa, suas conclusões são seguras comprovações empíricas da vulnerabilidade intrínseca do consumidor, absolutamente coerente com o princípio consagrado na lei. Suas pesquisas evidenciam um ser humano sistematicamente “repleto de heurísticas e vieses, autoconfiança injustificada, uma notável inaptidão para a probabilidade, e uma série de outras características cognitivas irracionais”[4], dotado de traços de a) racionalidade limitada; b) autointeresse limitado, e; c) força de vontade limitada”[5][6]. Note-se que essas circunstâncias independem do nível cultural ou de educação formal. As conclusões obtidas por essa prestigiada escola (frise-se, evolução recente da Law & Economics) validam e legitimam, também no plano das outras ciências afins, em diversas passagens e como resultado de inúmeras pesquisas empíricas, o princípio legal da vulnerabilidade do consumidor[7], muito contestado, exatamente, por alguns estudiosos de Law and Economics. Ademais, tampouco o reconhecimento da vulnerabilidade de um dos sujeitos da relação importa necessariamente no juízo de valor negativo a respeito do comportamento da outra parte, o fornecedor.
É preciso que os estudiosos do Direito do Consumidor que ainda resistem às possíveis contribuições da Law & Economics permitam-se estudá-la sem receios prévios. É bem verdade que também há pontos de tensão entre as ideias, e esses devem ser enfrentados com argumentos que justifiquem a opção feita, mas se acredita que há muito mais contribuição para o atual estágio do processo evolutivo da política consumerista brasileira do que conflito. Do mesmo modo, é preciso que os estudiosos de Law and Economics reconheçam o caráter absolutamente humanista que subjaz todas as políticas públicas derivadas do reconhecimento dos direitos humanos, sobretudo econômicos e sociais, realizado pelos estados nacionais e que constituem escolhas políticas previamente definidas e consagradas pelo ordenamento jurídico. Igualmente, é preciso que eles estejam ciosos do risco em que podem estar incorrendo ao produzirem as pesquisas empíricas tão festejadas pela Law and Economics: por enviesamento prévio, próprio da humanidade do acadêmico, algumas delas podem servir tão-somente para comprovar aquilo que o pesquisador desde o início acreditava…
Este artigo pretende ser, sobretudo, um convite a novas pesquisas e à união de esforços intelectuais.
P.S.: Tive a alegria de, com parceiros intelectuais da melhor qualidade, com quem muito aprendi, debruçar-me sobre diversas possibilidades de influência positiva da Economia Comportamental sobre aspectos variados da defesa do consumidor contemporânea, especialmente no atual estágio da política pública nacional: a) com a professora da Universidade de Lisboa, Rute Saraiva, estudamos a regulamentação da publicidade voltada para crianças[8]; b) com Diógenes Carvalho de Faria, estudamos a disciplina do superendividamento[9]; c) com Bruno Braz de Castro, aprofundamos o estudo do superendividamento a partir do projeto de lei em tramitação[10]; d) com Walter José Faiad de Moura, estudamos a regulamentação do tabagismo[11]; e com e) Felipe Moreira dos Santos Ferreira, estudamos os impactos no consumidor dos períodos de recessão econômica[12]. Reconheço, entretanto, serem estudos ainda introdutórios, muito havendo a que se evoluir nas pesquisas acadêmicas nesse campo, especialmente no que concerne aos trabalhos efetivamente transdisciplinares, conciliados com uma pesquisa empírica de qualidade.
Fonte: Consultor Jurídico
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