O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está entre as leis que, como se costuma dizer, pegaram no Brasil. Três décadas depois da promulgação, em 11 de setembro de 1990, a legislação continua na boca dos consumidores, que podem não saber citar nenhum artigo, mas não têm dúvidas do direito à informação, a produtos seguros e à denúncia de práticas abusivas.

Se os avanços são inegáveis, especialistas ressaltam, porém, que a pandemia abriu brechas para retrocessos que podem se perpetuar para além dessa que é a maior crise sanitária do século.

A lei 14.046, que desobriga o ressarcimento em dinheiro em caso de adiamento e cancelamento de serviços de turismo e eventos culturais afetados pela pandemia, está entre os casos citados como contrários ao CDC. A medida provisória que autorizou o ressarcimento de passagens em até 12 meses após o fim da calamidade — prevista por decreto até 31 de dezembro — é outro.

— Houve uma quebra na proteção dos consumidores de serviços aéreos. A pandemia foi um catalisador de mudanças que há tempos eram buscadas pelas empresas. E a lei de eventos cria uma espécie de confisco — diz Filipe Vieira, presidente da Associação Brasileira de Procons (Procons Brasil).

Outra preocupação é com a criação, por decreto presidencial, do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC). Para Vieira, o conselho fragiliza a atuação dos Procons, pois prevê a revisão de decisões por eles tomadas.

Hora de manutenção

Marilena Lazzarini, presidente do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), critica a composição do conselho, que dá maioria ao governo federal. Ela também teme falta de transparência, já que as reuniões serão sigilosas:

— A formação não é democrática, e a falta de transparência fere inclusive os preceitos da OCDE (organização que reúne países de alto desenvolvimento), onde o Brasil acaba de se tornar membro da comissão de segurança de produtos. O conselho é o ato simbólico da abertura da porteira para passar a boiada em relação o direito do consumidor.

Marcelo Sodré, professor da PUC-SP, que assessorou a comissão que redigiu o CDC, diz que o momento é de trabalhar pela manutenção da integridade em lei:

— Temos de lutar para manter o que conseguimos: os Procons, que são importantes canais de reclamação, e a possibilidade de recorrer ao Judiciário, que permitiu, por exemplo, que se recompusesse a perda imposta por planos econômicos aos poupadores.

Juliana Domingues, titular da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), diz que as mudanças impostas pela pandemia acabarão com ela e não reduzem direitos:

—Não se pode considerar um retrocesso, pois foram medidas tomadas para garantir ao consumidor serviços pós-pandemia, para evitar prejuízos maiores a médio e longo prazos. Quantas companhias aéreas teríamos hoje no Brasil?

Juliana não fala em enfraquecimento de Procons, mas admite que a harmonização é um desafio:

—Num país com 990 Procons, Ministérios Públicos, Defensorias, agências reguladoras, é preciso um ambiente favorável ao diálogo. A falta de harmonização cria insegurança jurídica.

Ela reconhece que ninguém ficou satisfeito com a composição do conselho:

— Tivemos críticas de fornecedores, agências reguladoras, ninguém se sentiu verdadeiramente representado, o que na minha avaliação é bom. Mas ainda não realizamos sequer uma reunião, estamos em período de adaptação. A crítica pela crítica eu não entendo.

Juliana destaca ainda que o sigilo é uma determinação do decreto 9191/2017, não foi uma escolha para o CNDC.

Na avaliação de Ricardo Morishita, professor do IDP/Brasília e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça, a tentativa de pôr a defesa do consumidor em oposição ao desenvolvimento econômico é um erro:

— O CDC não é um fardo, mas o combustível, o catalisador para o desenvolvimento, além de gerar valor para a sociedade. As empresas de tecnologia fizeram essa lição de se conectar ao consumidor, ouvir seus anseios e respeitar seus direitos, e isso as levou à inovação — diz Morishita.

‘Comando’ da Constituição

Para Juliana Pereira, presidente do IPS Consumo e ex-secretária nacional do Consumidor, é preciso ter um olhar mais amplo ao avaliar o CDC:

— Trinta anos é um filme, não podemos olhar como uma fotografia do hoje. E o CDC transformou as relações de consumo no país. A Constituição deu um comando ao Estado de promover a defesa do consumidor. Ir contra essa determinação é aumentar a judicialização no Brasil.

Fonte: O Globo