Não existe luta pelo feminismo enquanto esta causa for exclusiva das mulheres. Essa é a premissa da campanha HeForShe (ou ElesPorElas), que a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil lança às 14h desta terça-feira (8/3) — Dia Internacional da Mulher. A advogada Daniela Gusmão, presidente da Comissão OAB Mulher, explica que a ideia é conscientizar e chamar os advogados a defenderem os direitos e a inclusão das mulheres em um mercado tão competitivo como o da advocacia.
A campanha HeForShe foi criada pela Organização das Nações Unidas e pode ser encampada por qualquer empresa ou entidade simpatizante à causa. Daniela considera a iniciativa imprescindível na área jurídica. Ela conta que, embora a participação das mulheres nas faculdades de Direito tenha crescido, o número de advogadas atuantes não chega a 50% no Rio de Janeiro. No mercado de trabalho, os números são ainda piores: nem 20% chegam a ser sócias nos 10 maiores escritórios de advocacia do país. Os salários também não são animadores.
Em entrevista à ConJur, Daniela explica que o sucesso das mulheres em um ambiente tão masculino tem um preço. “É um mundo complicado esse o da advocacia, principalmente em áreas típicas, como a empresarial e corporativa, que tem, por exemplo, o chamado closing de operações, que obriga as pessoas a ficarem em uma sala de reunião por até três dias sem sair. A mulher vai dizer para os filhos e o marido? Infelizmente, esses homens ainda não dividem [as tarefas] com as suas mulheres”, constata.
Por isso, a importância dos homens participarem da luta. “A sociedade se utiliza da nossa franqueza e coragem, mas não vê nisso algo merecedor de crédito para subirmos. Em um escritório de advocacia, você percebe isso claramente: na hora que queriam que você fosse amigo do cliente diziam para ir lá e almoçar com ele, porque você é despachada e tal, mas na hora da remuneração, afirmam ‘vamos colocar aquele menino, que tem a postura de advogado’. Isso é algo que que quem está na liderança tem que perceber”, ressalta.
Na entrevista, a advogada fala ainda sobre o espaço da mulher no Poder Judiciário e o fato de as duas principais cortes do país — Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça — passarem a ser comandadas por mulheres neste ano (ministras Cármen Lúcia e Nancy Andrighi).
Leia a entrevista:
ConJur — No que consiste a campanha e por que a OAB-RJ decidiu aderir?
Daniela Gusmão —
A gestão do Felipe [Santa Cruz] sempre deu muita força para as comissões temáticas, e a Comissão OAB Mulher sempre teve apoio da instituição. Mas percebemos que ela estava muito voltada para a questão da violência e estávamos esquecendo a questão do feminismo no mercado de trabalho e na política. Considerando que o Conselho Federal instituiu este ano como o da mulher advogada e percebendo essa ausência da OAB Mulher no campo do mercado de trabalho da advocacia, resolvemos voltar nossas armas para isso. E o dia 8 será o marco. Tenho pavor de comemorar o Dia da Mulher entregando rosas, não é isso que este dia deveria representar.
ConJur — O que a campanha prevê?
Daniela Gusmão —
O HeForShe é uma campanha mundial, lançada pela ONU. É uma campanha aberta para entidades, empresas e pessoas que queiram aderir esse compromisso. E qual é o compromisso? O de entender que não existe luta pelo feminismo enquanto essa luta for só das mulheres. É aceitar que existe um mundo que até hoje os homens continuam dando as regras. Então, enquanto os homens não entenderem que precisam se comprometer, a igualdade de gênero não virá nunca. E é exatamente isso que a gente está querendo introduzir na OAB por que entendemos que somos um canal importante. Apesar da mulher estar chegando no mercado [da advocacia], somos ainda menos de 50% de advogadas atuantes. Vamos chegar a um equilíbrio, com metade de advogados homens e metade mulheres, talvez neste ano, no Rio de Janeiro. Mas mesmo assim, ainda é um mundo masculino. Mesmo quando a gente entra, o que acontece? As mulheres que conseguem sucesso, atuam com uma forma masculina. Precisamos chegar a um ponto onde as características femininas sejam vistas de maneira qualitativas e que trazem benefícios para a atuação profissional.
Conjur — Como será possível mudar essa cultura?
Daniela Gusmão —
Em primeiro lugar, fazendo os homens entenderem o que é o conceito. A campanha reúne histórias interessantíssimas. Por exemplo, a de um executivo que fazia palestras em diversos lugares e tinha como descanso de tela do seu computador a imagem do HeForShe. Alguém, um dia, perguntou se ele era gay por causa daquele descanso de tela. E ele respondeu: “Acredito que mulheres e homens que fazem o mesmo trabalho merecem a mesma remuneração. Você acredita nisso?”. A pessoa respondeu que sim e ele disse: “Devo te dizer que você é um feminista, e que você deveria aderir à campanha”. É isso o que a campanha quer: passar o conceito, fazer com que as pessoas entendam que o mundo inteiro pode trabalhar pela igualdade de gênero. Com relação aos escritórios advocacia e aos departamentos jurídicos, queremos que eles comecem a pensar de forma crítica esse conceito. Tem um estudo, que ainda vai ser divulgado, que aponta uma massa de advogadas na base, contudo nem 20% chegam a ser sócias nos 10 maiores escritórios de advocacia do país. Então, temos [mais advogadas] na base, porque ocorreu a feminização do Direito, como também em diversas outras carreiras a partir de 1950.
ConJur — Qual é a explicação para tão poucas advogadas alcançarem posição de chefia?
Daniela Gusmão —
Infelizmente, por motivos bem óbvios. Em primeiro lugar, as mulheres não conseguem deixar claro as suas diferenças. Muitas mulheres acham que precisam se masculinizar para chegar lá. Já as mulheres que resolvem ter filhos saem desse estereótipo. Então, a mulher que não tem filho e se torna uma “mulher homenzinho” é a que pode chegar a ser sócia. As 90% das que resolveram ter filhos vão ter que parar ou ficar apenas como sênior ou pleno. E olhe lá, porque elas não vão poder viajar tanto quanto aquela que não teve filho. E o pior é a fala das mulheres que resolveram não ter filhos, colocando de lado as que optaram ter. Temos duas formas de atuação na advocacia: em um grande escritório, na massa ou como sócio, ou sendo dona do seu próprio escritório. E se você é dona do seu escritório, você também tem que se policiar para não agir assim. É que nesse caso você é empresária, está ali vendo o faturamento, quando vem alguém e diz que está grávida. E se o escritório for boutique, pequeno, com cinco advogados, você diz: “meu Deus, vou perder 1/5 da minha força de trabalho, enquanto pago quatro meses de licença maternidade”. É quando você tem que dizer: “não quero nem saber, está na lei e eu vou fazer isso. Mesmo que a pessoa não seja empregada”. Não é possível que uma mulher não entenda que outra mulher tem o direito de ter filhos e de receber os seus quatro meses. Isso tem que ser policiado, porque quando a gente vê, estamos pensando como um homem. É um mundo complicado esse o da advocacia, principalmente em áreas típicas, como a empresarial e corporativa, que tem, por exemplo, o chamado closing de operações, que obriga as pessoas a ficarem em uma sala de reunião por até três dias sem sair. A mulher vai dizer para os filhos e o marido? Infelizmente, esses homens ainda não dividem [as tarefas] com as suas mulheres. O marido estará em casa querendo saber onde ela está. Precisamos do HeForShe imensamente, pois se os homens não entenderem essas questões, não vamos chegar a lugar algum.
ConJur — A campanha prevê algum tipo de cota?
Daniela Gusmão —
Isso é difícil. Existe uma liberalidade do sócio, então seria até inconstitucional a gente exigir isso de alguém. Mas se o escritório entender que pode aderir à campanha, depois as próprias pessoas que fazem parte daquele escritório vão ter poder para fazer pressão.
ConJur — Recentemente vimos um juiz indeferir o pedido de uma advogada gestante para antecipar a audiência, que estava marcada para licença maternidade dela. Ele, inclusive, sugeriu que ela passasse a causa para outro. É comum esse tipo de tratamento do Judiciário às advogadas?
Daniela Gusmão —
Esse caso foi tão absurdo, que chamou a atenção. Não acho que os juízes costumam atuar dessa forma, mas acho que ainda é muito difícil para a mulher que trabalha no contencioso. Tanto que a primeira coisa que fizemos nesta gestão foi enviar um ofício ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro solicitando que a corte dê prioridade às sustentações das mulheres grávidas e lactantes. Esperamos que as mulheres saibam fazer um uso adequado desse direito, caso o tribunal finalmente nos dê a honra de concedê-lo. Há mulheres grávidas de três meses que não precisam de prioridade frente, muitas vezes, a um senhor de idade. O bom uso do Direito também é necessário por nossa parte. Mas uma mulher lactante, por exemplo, acho até mais importante. Um bebê mama de três em três horas. Se a pessoa chegou às 13h, mas só fez a sustentação às 17h, certamente esse bebê ficou sem mamar. Então, o que a gente pode citar é a inexistência hoje, no Poder Judiciário, deste direito, que já deveria ter sido implementado há muito tempo.
ConJur — Como você avalia a ascensão da mulher nos tribunais?
Daniela Gusmão —
Do ponto de vista interno do tribunal, a vantagem é a regra da antiguidade. Percebo é que as mulheres que estão nos cargos de desembargadoras ou de ministras, ainda que não por política e merecimento, chegaram lá por antiguidade. Temos hoje uma boa de representação feminina com as desembargadoras e as ministras, apesar de ter demorado muito. A história da Myrthes Gomes de Campos, primeira advogada do Brasil, exemplifica isso. Ela se formou em 1898, mas só sete anos depois ela conseguiu que o Instituto dos Advogados do Brasil, que era o antigo OAB, a aceitasse como advogada. E somente 55 anos depois da estreia dela no mundo jurídico uma juíza tomou posse no Brasil [o fato aconteceu em 1954 com a posse de Thereza Grisólia Tang, de Santa Catarina]. Outros 46 foram necessários até que uma mulher, Ellen Gracie, fosse admitida no STF. Então, a gente está falando de 50 em 50 anos para alguma coisa marcante acontecer para a mulher. No dia 8, vamos conceder a medalha Myrthes Gomes de Campos a duas advogadas.
ConJur — Uma história que ainda é atual.
Daniela Gusmão —
Não é? A gente vê que as grandes questões de direitos humanos, por exemplo, no final sempre são decididas pelas mulheres, ou porque foram levadas ao tribunal por advogadas ou porque juízas as julgaram. São sempre elas. Seja por TPM ou maluquice, isso é um fato, porque são as nossas características. E essas características não são ruins, embora as pessoas se utilizem delas da forma que as interessa. Então, a sociedade se utiliza da nossa franqueza e coragem, mas não vê nisso algo merecedor de crédito para subirmos. Em um escritório de advocacia, você percebe isso claramente: na hora que queriam que você fosse amigo do cliente diziam para ir lá e almoçar com ele, porque você é despachada e tal, mas na hora da remuneração, afirmam “vamos colocar aquele menino, que tem a postura de advogado”. Isso é algo que que quem está na liderança tem que perceber.
ConJur — Neste ano, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vão ser presididos por mulheres. Qual é a expectativa da advocacia em relação a isso?
Daniela Gusmão —
Já tivemos um período em que ficaram [na presidência] a Ellen Gracie, no STF, e a Eliana Calmon, [como interina] no STJ. E mais a Dilma [Rousseff, presidente da República]. Acho interessante como fato, mas enquanto for algo esporádico, não adianta muito. Quem está no poder precisa de base. Vi isso muito claramente nos tribunais mais próximos a mim. Se ela não tem uma base de sustentação para algumas mudanças que uma mulher faria, não consegue fazer e ela vai acabar atuando, de novo, como homem. Isso porque ela tem embaixo dela as pressões de uma base que não quer mudanças. No caso do STF existe um rodízio, mas em outros existe uma eleição, e os eleitores se sentem donos desse mandato.
ConJur — Este é o ano da mulher na OAB. Quais são as mudanças que a entidade quer fazer internamente?
Daniela Gusmão —
Existe a cota de 30% de conselheiras, que já foi suadíssimo implementar. Foi dificílimo encontrá-las. As mulheres não estão acostumadas a participar destes foros. Por isso acho que a cota é uma coisa muito importante. As pessoas falam que não deveria ser através da cota, mas precisa sim, porque a gente precisa que isso aconteça. Acabamos convencendo as mulheres. Elas acham que não têm o que fazer ali. Além disso, é mais difícil para elas, que já têm tantas coisas para fazer. Sim, a mulher conselheira vai ter que deixar de estar no escritório, onde ela já é cobrada a ter mais tempo, já que no dia anterior ela teve que sair mais cedo para ir à reunião da escola do filho, porque o marido dela não pode ir. E ela vai ter que ficar fora mais um dia para estar na OAB. Mas a gente precisa fazer isso. Se a gente não forçar isso, a gente não vai chegar lá. Ano passado, tivemos a primeira eleição na qual a cota para mulheres foi estipulada, com a eleição do Felipe [Santa Cruz, presidente da OAB-RJ]. Agora tivemos a primeira mulher presidente de uma seccional, em Alagoas. Para você ver como é machista ainda o ambiente. Nunca o Conselho Federal teve uma mulher presidente.
ConJur — Como a senhora avalia os salários pagos às advogadas?
Daniela Gusmão —
[A diferença de] salário é brutal. E na advocacia é pior ainda, porque não existe um padrão para sócios ou associados. O escritório pode pagar o que quiser.
*Texto alterado às 11h46 do dia 8/3 para acréscimo de informações. 
Fonte: Conjur